segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

A primeira noite do personagem- Rolando Vezzoni


A folha caída só vale a pena por ter em algum momento caído.
Existir problema não é problema, não querer nada já é querer alguma coisa e caminhar despretensiosamente não é fácil, se fosse fácil, o mundo seria também.
Cá em meus contos, vemos um personagem quase sonâmbulo, vivendo suas histórias muito pouco épicas, um ateu espiritualizado, um esforçado vagabundo vivendo suas suas crônicas do desinteresse.
Outro dia mesmo, meu personagem caminhava sem rumo num começo quente de noite de verão, lá pras vinte e duas horas, como apenas os conceitos abstratos e sem nome caminham.
Acendeu uma ideia semi-concreta de cigarro e escutou a projeção gráfica de um miado.
“miau!” pausa “miau!” pausa “miau” pausa “miau”...
Palavras costumam ser inertes, signos complexos que funcionam de forma arbitrária em diversos contextos... Por aqui “miau” é barulho de gatinho, onomatopeia consolidada.
“Ele”, como o personagem que é, simulou dois pensamentos que provavelmente vieram do escritor, um que perguntava por que o gato mia, e outro da diferença funcional do termo “gato” para com o termo “medo”.
Elaborava sua tese a respeito da complexidade do “medo” e da simplicidade de “gato”, que para bons entendedores da língua portuguesa, é o bicho que faz “miau”.
Para o texto não ficar cansativo encerrou suas especulações, e começou a procurar o gato que miava com medo de algo.
Depois da exaustiva simulação de alguns minutos perdidos encontrou o bichano, que era filhotinho e estava num muro alto, e que provavelmente não estava conseguindo sair de cima, por isso a barulheira aguda e desesperadora.
“Ei, gato, vem cá gato” se aproximando com andar de um bom retardado, que apenas os animais merecem “vem cá com o tio, eu te ajudo”.
O animal pareceu não entender muito bem o que outro animal queria, mas deu alguma atenção por estar preso e com um pouco de pena do humano patético.
“miau” podia muito bem estar sugerindo terapia ou que eu saísse e arrumasse um enredo fictício mais interessante para a história, mas como não manjo nada de semântica felina mantive meu personagem tentando ajudar.
“Bom, vou subir o muro, ajudar meu amigo novo”.
Começou uma escalada pseudo-heroica do muro, com toda a capacidade de um homem desocupado.
O muro era pequeno a princípio, sem problemas, mas como muros tem tamanho, e tamanho é altura, e altura depende de medo, quando chegou ao final do alpinismo urbano entendeu o porquê das lamúrias do gato, ficou com bastante incomodado com a altura e com quão barata é sua coragem, bastava adicionar dois metros e meio do chão para ele mesmo começar a miar.
O bichano o olhou desgostoso, como que incomodado com sua companhia.
“Ei, qualé, eu vim te ajudar porra...”
“miau”, mas agora, um miau maldoso, típico de quem está pronto para o ataque.
“calma... calma...”
Gatos são felinos, felinos enxergam bem durante a noite, tem reflexos absurdos, o irritante hábito de caírem de pé e unhas bem afiadas, unhas essas, que no caso, caíram sobre nosso herói vertiginoso, que despencou de costas na grama todo arranhado e com o orgulho bastante ferido.
Vendo o gato encima do muro, e se vendo caído de forma pouco digna decidiu que era hora se ir embora daquele trecho de conto maldoso.
Tentou levantar, mas resolveu respirar alguns momentos, afinal, estava meio arrebentado.
O gato riu, gatos podem rir em meios literários, afinal, eles são apenas uma representação de gato, depois ele pulou, ainda sorridente, caiu de pé, e foi embora tranquilamente.
Anda difícil ser personagem hoje em dia, ainda mais com escritores que tem medo de altura...
Hora do personagem descansar um pouco, afinal, acabou de ganhar vida e dor nas costas, como todos os vivos.

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