quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Quantizada - Bruno Santana


Um velho sem mar
Um mestre sem margarida
Um Gatsby sem estilo
Um Chinaski sóbrio:

Aqueles livros empilhados.

Um fio de cabelo caído
Um concerto sem emoção
Uma equação sem sentido
Um verso sem rima:

A vida amontoada.

Letras enfileiradas
Frases encadeadas
Parágrafos delimitados
Diário latejante:

As palavras ficaram.

Tentativas frustradas
Silêncio de negócios
Oscilações neuroquímicas
Organismo quantizado:

Nada tem sentido.

Não! Não! Não!

O Nada tem sentido.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Manhã azulada- Rolando Vezzoni

Resolveu passar a noite em claro por haver dormido pouco na noite anterior.
Passou aquele dia todo oscilando entre a náusea e a fraqueza psíquica, um bem bolado de ressaca moral e efetiva somado a algum desânimo.
Passar a noite em pé quando não se está ocupado e entre amigos é um desafio que envolve competência, convicção e perfil lunático, hora satisfeito com essa auto-mutilação mental, hora pensando se, em efetivo, deveria fazer aquilo. Aí a parte lunática... É claro que não deveria.
O primeiro terço foi fácil, rede social e punheta, punheta e rede social, depois banho e diversas banalidades da rede... não havia como não se perceber o início de uma congestão mental brutíssima, e isso tudo devido ao enfrentar de mais uma noite de excessos bastante claros em uma gama razoável de sentidos, estava com a mesma camiseta á 36 horas.
O segundo terço teve como sua função o simular de um purgatório, repleto de minutos contados e recontados. Já havia tomado a decisão de não dormir, logo, também não poderia comer, pois a comida serve como auxílio externo, e para ele isso seria um placebo criminoso, uma droga pesada no mundo dos desafios auto-impostos lunáticos.
 Tinha fome e sono, e sabendo de seus horários iniciou o milésimo cálculo da noite, valeria a pena encerrar sua epopeia durante o interlúdio? Suas mãos ainda tremiam, e seu ombro pulsava, seria esse o fim? Havia entrado de cabeça na psicose e sabia bem disso, então decidiu remediar o balanço cerebral olhando as incomplexidades alheias, ia de volta para a rede... mas deu para trás, sabia que abrindo aquela janela corria o gravíssimo risco de ser abordado por alguém, letras escuras em uma janela pop-up piscando de forma genérica, demandando atenção e resposta. Sabia que não aguentaria aquilo... talvez pudesse ficar num falso offline? Não, se mudasse para offline dentro do universo azul e branco social nunca mais voltaria a aparecer, perderia tudo, afundaria num abismo.
Por fim deu uma caminhada de dez minutos em uma trajetória semi circular envolta da sua cama... afinal, não poderia ser diferente, se não ia dormir nem comer, também não poderia sair do cômodo.
O terceiro terço teve um caráter semi-eufórico, é a onda da falta ou do excesso de "o que quer que seja" que rola no encéfalo e nos hemisférios fazendo tudo parecer sintético. Ainda mais quando faz horas que está sem comer, dormir ou se entorpecer, a desintoxicação suprema, o destilar do ser humano, o caminho do homem para o homúnculo, quando tudo fica mais gelado e falso, o mundo coberto por  plástico, a única coisa que ainda parece existir é o cinzeiro cheio e a boca azeda.
A essa altura já estava trancado no banheiro, o perfume de "uma alguém" que brotou e foi embora vazia de significado horas atrás ainda evaporava singelo da camiseta de 36 horas, meio molhada por ter sido colocada de novo depois do banho, antes do corpo secar por completo... lhe era impossível tirar a camiseta.
Mais um cigarro, mais uma mulher, mais uma coca-cola, uma cerveja e mais uma música, um milhão de coisas aconteceram naquelas ultimas 36 horas, mas ainda estava com muito sono e fome... ainda não era o bastante, faltava algo, sempre falta, não importa o quanto se sublime.
Epílogo? Sim, depois deu a hora, tomou outro banho, se perdeu dentro do quarto e trocou de roupa, abriu a janela e fechou a janela esperando frenético pelo despertador. Olhou para o espelho, olheiras imensas, como riscos de carvão... fora isso estava bem disfarçado, ninguém sabia dos pensamentos não elaborados e das idéias vacilantes que a mente não trabalhou, um grupo de divagações rebeldes que querem muito um travesseiro para no dia seguinte fazerem sentido.
Aquela foi a manhã mais azulada do universo.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Sobrancelhas brancas- Rolando Vezzoni

   Caminhando, caminhando sem pensar, provavelmente porque havia acabado de jantar e faltava alguns mililitros de sangue na na cachola, ou não, pois estava pensando em não pensar em nada e atribuiu isso ao fato de ter jantado. Mas o que quer que fosse que estivesse pairando em sua mente era pouco importante e nada concreto.
   Quando se habitua a andar com seu cachorro é comum desaprender a se comunicar, pois o cachorro não fala, ao passo que também se desaprende a ficar sozinho devido á inacreditável companhia que apenas um bom canino pode oferecer. Estava bastante desconfortável com relação a isso, e mais desconfortável ainda por estar pensando nisso e em si mesmo pensando nisso... interrompeu a linha quando um nariz preto úmido e gelado brotou na palma da sua mão.
   "um?!" olhou e sorriu em seguida "ei dog, psiu!"
   -Opa! como é que você anda?- Diz sorridente um senhor, com uma voz intensa completamente incoerente com seu aspecto frágil, meio coxo, barbado e vermelho ofegante.
   -Beeem, e o senhor?- soltou em estado hipinótico, fazendo o máximo para ser tão agradável quanto ele.
   -Sim.- simplesmente- Você viu como ela está maior?
   Passa o olhar para aquela delicada vira-lata que amistosamente se esfregava em sua mão, arrasta a palma até a parte inferior do focinho calmamente, afagando e a deixando satisfeitíssima.
   "eu não conheço essa mocinha, não conheço esse senhor... eu nem sou daqui direito, não desse lugar, nenhum lugar"
   -Uhum, ela tá linda, quanto tempo mesmo?
   -8 meses... eu já ensinei uma coleção de truques para ela!- responde numa tonalidade intermediária entre o estasiado e o calmo.
   Nessa altura eram companheiros de jornada, inconscientemente havia desacelerado o passo para se adequar ao das quatro sobrancelhas brancas.
   Conforme o andar prosseguia conversou algo que não lembrava, mas não se importava muito com o fato de não lembrar, o pouco que se importava era referente ao fato de pensar a respeito do porque não se importava com o que pensava, e isso era, para ele, bastante importante.
   Quando retornou a sua casa estava em outro planeta, num conforto psicótico que vinha aos poucos passando, vinha passando a partir do momento em que o senhor entrou em um condomínio de apartamentos  acenando adeus, isso alguns minutos antes.
   Começou a organizar a imagem... a voz vacilava um pouco ofegante, mas era grave e calma, um paradoxo, assim como os cabelos branco-pálidos contrastando com a pele vermelha suada e com o olhar distante. Um homem cansado em estado de absoluta satisfação com sua vira-latinha peralta pulando arbustos conforme os comandos.
   Eram quase vizinhos, mas ele não lembrava, o senhor sim, até puxou assunto, ele não conseguiria lembrar se efetivamente conhecia a dupla, jamais conseguiria, pois é habituado a andar com seu cachorro em silêncio e acompanhado, noutro plano, noutro mundo.
   O senhor disse que sempre teve cachorro... e ele também, só que com bem menos sempre, e bem menos vibração... algumas pessoas são vibrantes.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

A história precisa de um final.- Bruno Santana


“Isso não é nada inspirador”; pensou ele depois de uma hora folheando diários antigos. ”Que raios de ideia foi essa: buscar inspiração nos vômitos cotidianos de minha mente perturbada. Isso não funciona, se vomitei é porque não tinha valor. Eu deveria sair para caminhar, comprar café, comprar um livros, ver alguns pássaros ou algo do tipo”. Fechou o último caderno, guardou o lápis no estojo, arrumou a mesa e passou a mão na cara.
“Não vai dar em nada; sei que não vai dar em nada. Não é assim que se escrever. Não! Não! Lembre-se das máximas! Lembre-se dos grandes!”. Enquanto pensava, pegou o bloco em que anotava grandes aforismos.
“Aprender a ler bem e a escrever bem” ~ Friedrich Nietzsche
“Find what you Love and let it kill you” ~Charles Bukowski
“There is nothing to writing. All you do is sit down at a typewriter and bleed.” ~Ernest Heminghway
“Merda! Onde ficou aquela da Sylvia. Aquela sobre não poder interromper o fluxo de pensamento na hora de escrever ...
.... era algo como: “Não posso estancar o sangramento. Quando olho, lá está o fluxo; sangue, poesia.” É, deve ser algo parecido.”. Fechou o caderno e saiu para a varanda da casa. No caminho, apanhou o maço de cigarros e o isqueiro vermelho.
Sentou com os cachorros por um momento e acendeu o cigarro. Na primeira tragada sentiu o peso do mundo em seus ombros; talvez não do mundo todo, mas da parte de mundo que não consegue escrever um conto. “Por que essa obsessão com contos? Era muito mais feliz quando escrevia poemas. O que quero ser? A porra de um Salinger ou Machado de Assis. Não tenho colhões para ser nenhum deles.”
Pensava que a necessidade de escrever contos surgira depois de ver o edital de um concurso para escritores. Aceitavam trabalhos na forma de contos ou romances. Um romance, com certeza, ele não produziria. Escrever uma novela é como casar e ter filhos: é preciso maturidade para não fazer merda e colocar outro perdido no mundo.
Sendo assim, sua oportunidade era trabalhar em cima das pequenas estórias.
Ele até tinha algumas. Quatro ou nove pequenas narrações não terminadas. Era sempre assim. Sentava ao computador, escrevia dez páginas e a mente secava. Construía personagens interessantes, esboçava uma trama, um cenário, mas era só isso. Suas estórias nunca tinham fim.
Escrevera a do gênio solitário, do menino sem emprego, da garota morta, do casal com problemas. Ótimas estórias, bom estilo, veia narrativa perfeita. No entanto, nenhuma delas tinha final.
Tentara levar seu problema ao analista, mas problemas de escrita não são matéria de psicólogos. Psicólogos sabem de mentes com defeitos e não de estórias sem final.
Também tentara ver mais filmes, ler mais livros, ouvir mais músicas, mas nada funcionava. Pensava, pensava, pensava, mas nenhum pensamento trazia fim à suas estórias.
Certa vez teve um insight: “Como posso escrever finais, se nunca terminei nada que comecei!?”. Começara a faculdade e não terminara, tinha um namoro péssimo que não terminava por comodismo e até sua higiene bucal era deixada pela metade. Era impaciente. Ansioso.
Sempre estava entre a xícara de café e os cigarros. Ansiosamente terminando um e começando outro. Vale a pensa acrescentar: era fato sabido que suas bitucas eram as maiores bitucas do oeste.
Ao menos, o dia era frio. Como constatara ao fumar o cigarro na varanda. Chovera na noite anterior e as nuvens encobriam o sol. Seus cachorros estavam encolhidos dentro da casinha e fumar foi um ato solitário.
Enquanto expelia fumaça dos pulmões alguns pensamentos passavam por sua mente, Infelizmente, nenhum era importante o suficiente para ser escrito. Infelizmente, nenhum era tão bom que oferecesse um final para alguma das histórias.
Ponderou que tudo aquilo de escrever era bobeira adolescente. Começara com a mania boba depois que tomara um pé na bunda. Seu coração partido só encontrava consolo na folha de papel em branco.
Poderia ser isso: precisava de um coração partido. No entanto, conseguir um nesses dias não era tarefa das mais fáceis. Com o tempo, construíra uma barreira emocional intransponível. Teria de tentar outra coisa.
Pegar o ônibus, sentar no banco da praça e rabiscar no bloco de anotações. Essa sim era uma grande ideia!
Saiu da varanda. Entrou no quarto. Trocou de roupa. Pegou um maço novo de cigarros, uma caixa de fósforo – preferia os fósforos quando saía de casa - , procurou algumas moedas, tomou o bloco e um lápis e foi para o ponto.
O ônibus não demorou muito; apareceu em cinco minutos. Prosseguiu até o terminal, de onde tomou outra condução para o centro da cidade. Já na viagem,olhando o rosto das pessoas, teve idéias e esboçou um pequeno poema:
A afronta ~ Giovani Ferreira
Poemas não levam ao céu
Poemas não salvam a pátria
Poemas não enchem barriga
Poemas não ganham garotas
Poemas não fazem nada.
“Um belo poema, mas precisa de um final.” Pensou ele enquanto descia e seguia para a praça. Lá instalado, retirou seu caderninho, o lápis, acendeu o cigarro e começou. Olhava, olhava e olhava. Procurava por cores, caras, formas e tons. Nada parecia suficiente.
Viu uma criança correndo atrás dos pombos. Viu um escarrando, um casal discutindo, um trabalhador seguindo apressado. Não era o esperado. Escrevia três palavras. Riscava duas. Seguia assim.
De repente, uma garota estranha sentou ao seu lado no banco. Possuía aquele tipo de estranheza que deixa as garotas bonitas. Vestia uma camiseta de rock; “The Velvet Underground and Nico”, aquela da banana, concebida por Andy Warhol. Isso interessou o escritor. Interessou muito. Interessou tanto quanto o jeito estranho da garota. Aliás, a camiseta completa seu jeito estranho.
- O que você está fazendo com esse caderninho bonitinho?
- Tentando escrever.
- Legal! Eu também escrevo.
- Interessante.
- Escrevo muito bem por sinal. Tenho ótimos contos, estou procurando alguém para publicá-los.
- Ótimo para você.
Encerrou ele com rispidez. Apesar do interesse na estranheza da garota, não gostava de ser interrompido enquanto escrevia. Estava quase escrevendo algo bom quando a senhorita chegara e ela cortara todo fluxo de pensamento.
Olhou para o caderno, rodou o lápis no dedo, acendeu outro cigarro, mas o fluxo tinha acabado por definitivo. Olhou para ela: estava estirada no banco, olhando atenciosamente para ele. Ela usava um óculos com armação de vó, desses que as garotas modernas pensam ser legais.
- Posso ver o que está escrevendo?
- Não. É pessoal.
- Ah! Corta essa. Pare de ser tímido. Se escreve, escreve para alguém, por que não posso ser esse alguém?
- Por que não. Não escrevo para ninguém. Escrevo para mim mesmo.
- Um belo escritor chato você é. Sim, um escritor bem chato.
Disse ela fechando a cara, fazendo um bico e largando-se ainda mais no banco. De repente, a garota soluçou.
Ele olhou e ela estava chorando. Chorando de verdade.
- O quê? Por que está chorando? Pára! Pára com isso! Não posso ver uma garota chorando.
- Você não gosta de mim. Por isso estou chorando.
- Eu nem te conheço. Não interessa se gosto de você ou não. Pára com esse choro. Quer ler o que eu escrevi. Toma, toma! Mas pára de chorar ok!?
- Tá bom.
- Temos um trato!?
- Sim.
Disse ela, esboçando aquele sorriso de criança quando consegue algo depois da chantagem. Pegou o caderninho e leu:
Quando termina o tempo de sorriso
ainda há tempo?
Quando a piada se perde na graça,
quando o riso desiste da praça,
quando o rosto rechaça,
quando nada é cachaça
ainda há tempo?
Você acha?
- Acho não! Tenho certeza! Sempre há tempo?
- Oi!?
- Estou respondendo a pergunta do seu poema.
- Ah sim. Obrigado. Feliz agora?
- Sim. Você escreve muito bem, mas sua letra é feia e suas frases muito tristes. Você é triste por ter a letra feia?
- O que minha letra tem a ver?
- Tudo. A letra é tudo para quem escreve.
- Besteira.
E voltou para a sua escrita; a menina continuava ali, sentada, olhando para o escritor trabalhando. Ele começou a descrever a garota no bloco. Pensou que aquele tipo poderia ser interessante para um personagem. Fez a imagem detalhadamente: os cabelos castanhos na
altura do ombro, a pele pálida, os olhos selvagens, a camiseta do Velvet Underground, aquela curiosidade insistente, o choro bobo.”Ao menos consegui um personagem.”Começou a sentir certa afeição pela garota. Resolveu perguntar seu nome.
- Luana. Muito prazer!
- Me chamo Giovani. O prazer é todo meu.
- Vai fazer algo agora Giovani!?
- Volto pra casa em meia hora, vai ficar escuro e perigoso aqui.
- “With the lights out it’s less dangerous”
- Quero ver cantar nirvana pra um estuprador na sua cola.
- Brincadeira.
Respondeu ela sorrindo.
- Quer ir para minha casa Giovani?
- Assim, tão rápido? Nem nos conhecemos, posso ser um maníaco qualquer!
- Que você é maníaco eu tenho certeza, mas não se anime. Só quero te mostrar meus textos. Quem sabe não te ensino a terminar um conto?
- Como sabe que não sei terminar contos?
- Oras! Tudo isso aqui: cigarros, banco de praça, a garota estranha chorando, o convite. Isto é narrativa de quem não sabe escrever final.
- Não. Isso quem está escrevendo não sou eu. Esse final não é minha responsabilidade.
- Você que pensa. Você é o protagonista. A responsabilidade é toda sua.
- Merda. Como vou fazer isso?
- Deixa que esse eu termino por você. Mas me compra um sorvete?
- Compro!
- Eba! Então vamos!
Tomou a mão do escritor, levantou e terminou o conto.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Tributo ao mongol- Rolando Vezzoni

Era só criança e brincava no parque.
Lá pros meus cinco pirralhos anos me deparei com o mongoloide e tive medo.
Eu era pequeno, pequeníssimo, e ele imenso me olhou e veio correndo com um sorriso tão grande quanto se pode ter.
Lembro bem de olhar amedrontador e abobado, eu pivete não tinha esse olhar símio e assustador... temia a selvageria, até a selvageria simpática dum monstro mais velho e debiloide que queria minha atenção... a amizade que ele queria era a minha, uma criança incapaz, incapacitada por seu pavor e falta de jogo de cintura.
O tal permanecia andando em meu encontro, eu recuava devagar daquele gigante de 12 anos, doente e frágil, preciosamente vulnerável e poderoso. Tudo ao meu redor ia sumindo, eu suava frio, sentia um nervosismo incomum... 
Lembro-me tão novo, tão cruel com aquela besta dócil... um inumano humano, temendo o tão humano inumano.
Há aquele animal inimputável, nascido normal que se torna um animal arisco, temeroso e fujão... ignorante, deveras... e há aquele marginal, que por puro azar o é.
Talvez seja melhor assumir o desconforto, do que ter pena falsa, simpatia simulada e condescendência.
O mongoloide foi embora leve, e eu o carrego até hoje desconcertado, desesperado com a ideia de ser um sujeito respeitável, que fala de preconceito por ter certeza que esse é o protocolo, mas não olha nos olhos deles... tenho simpatia por aquele garoto sorridente que já quis ser meu amigo, e como meu tributo, lhe dou dignidade não sentindo pena, medo ou remorso, mas contando essa história... pois eu era só uma criança que brincava no parque.

o anjo- Bruno Santana


E dia desses encontrei um anjo na rua.
Tenho certeza que poucos notaram:
um bêbado
algumas crianças
eu
ninguém.

Vestia uma jaqueta de couro
uma bota lustrada
fumava um cigarro
e óculos escuros.

Se não fosse um anjo
juraria que era apenas mais um

mas
era um anjo
eu tinha certeza.

Suas asas não apareciam
mas sabia que estavam ali:

Em algum lugar entre a jaqueta de couro
e a camisa desbotada.

O anjo andava
e olhava para as pessoas

Com cara séria e sisuda
de como quem pensa em tudo e
em todos

E seu andar entregava sua origem angelical
Andava com calma

Na multidão complexa

sem esbarrar em ninguém

Sorria para as crianças
e elas radiantes retornavam o sorriso.

Era um anjo simples
e moderno
talvez nascido aqui mesmo na terra
e promovido à categoria de anjos

Como eu pude saber que era angelical
isso nunca vou saber
Mas seu rosto cintilava aos meus olhos
e sua presença me enchia de terror e paz

Logo eu que pensava ser ateu

mas, acho que acreditar em anjos não é o mesmo que acreditar em Deus

Acreditar em anjos é poético
e poesia é tudo o que desejo.

O anjo andava
andava
andava

inevitavelmente tive de segui-lo
pela rua infestada de pessoas
fria e cheia de vento

Era difícil acompanhá-lo,
pois caminhava no rápido passo angelical
e não esbarrava em ninguém.

Eu também estava de bota
que machucava meu pé
e não conseguia desviar de ninguém.

O perdi de vista
e foi a pior hora do meu dia.

Continuei seguindo em frente
e andando
e andando
e esbarrando

Quando parei para perceber
todos tinham o mesmo semblante
do anjo que eu vira

E todos radiavam
e todos cintilavam

e na rua não havia mais carros.

"Que coisa mais estúpida" ~ pensei eu, acendendo o cigarro.

Quando dei a primeira tragada
O anjo da jaqueta de couro
tomou o isqueiro de minha mão
acendeu seu próprio cigarro angelical

Deu uma baforada na minha cara
expeliu toda a fumaça e me disse
me fulminando com os olhos:

"Estúpida mesmo é essa sua mania de não acreditar
em nada".

Atravessou o cruzamento
bateu as asas
e voltou para sua casa.