quinta-feira, 18 de março de 2010

Feliz dia das mulheres- Rolando Vezzoni

Ela entrou na delegacia, com um sorriso no rosto.
-olá senhorita! Tudo bem?-o delegado perguntou.
-se tudo estivesse bem de fato, eu não estaria aqui, certo?
-faz todo o sentido.O que houve?
-nada, tive um dia normal, trabalhei, depois arrumei a casa.Por isso que a minha blusa púrpura está combinando com o meu olhar.
-veio prestar queixa?
-prestar queixa não, posso até me queixar um pouco se quiser... Meu pai largou minha mãe quando eu era criança, minha mãe cheira tanto que tem desvio de septo, meu filho é um excelente vagabundo, e o meu marido me violenta.
-a senhora não me parece muito feliz.
-feliz? Eu sou feliz! Eu tenho que reclamar das coisas de verdade, eu tenho muitas coisas para reclamar, e isso é ótimo... Não sou que nem esses homens da caneta que tem que ficar inventando vidas de merda para escrever críticas! Eu TENHO essa vida de merda!
-... Não sei o que dizer.
-não diga nada, você não precisaria escutar isso tudo...a culpa é do governo!
-se a senhora não veio aqui para um B. O, porque está aqui?
-vim comemorar o dia das mulheres...
-feliz dia das mulheres.

terça-feira, 16 de março de 2010

calor do fogo- Marina Naufel

E assim acordei: assustada, por conta de um simples mosquito que me
atormentava o sono. Mas, no fundo, bem lá no fundo, eu sabia que o
motivo verdadeiro que havia me acordado era um “mosquito” muito maior
que o que me rondava. Um que não saía da minha cabeça já havia algumas
horas. E o pior de tudo é que eu tinha certeza de que, se eu não tomasse
logo uma atitude, ele iria acabar tirando de vez meu leve sono.

Eu não sabia puramente o porquê daquele “mosquito” inconveniente ter
surgido, e depois de um dia, eu já o tinha catalogado na lista dos
“insuportáveis”. Ligar os fatos!
Era isso que eu precisava fazer para descobrir o porquê desse
hospedeiro ter escolhido justo a mim. A ordem cronológica dos fatos iria
demorar um bocado de tempo para acabar, afinal meu dia de ontem havia
sido no mínimo... Cheio. Eu não tinha pressa, então logo peguei um papel
e uma caneta para começar a refazer meus passos.
Havia acordado
determinada a cumprir com todas as minhas tarefas e obrigações. Escovei
os dentes, tomei um banho (afinal, acordar às cinco da manhã todo santo
dia tem seu preço), fome. Vesti-me, preparei meu bom café amargo e
finalmente - lá pelas sete da manhã – saí para o trabalho. Passei no
caixa eletrônico e realizei mais certa quantia de tarefas sem tanta
importância. No intervalo dos sinais consegui pintar as unhas de forma
que não parecessem tão mal cuidadas, e liguei para o escritório. Minha
secretária atendeu, e confirmou tudo o que eu queria ouvir: a reunião
iria acontecer dali a pouco (assim que eu chegasse). No mais, tudo
corria como planejado. Trânsito, muito
trânsito! Nada normal para as nove da manhã! Liguei o rádio, e depois
de alguns minutos de espera descobri o motivo de tal rebuliço: incêndio
na favela, de novo. Pela
primeira vez no dia, senti-me brava e estressada! Era a segunda vez que
isso acontecia em menos de um mês, e bem em dia de reunião importante! Por causa daqueles
“descuidados” que ficam se amontoando em um monte de barracos de
papelão, a cidade estava um caos, e eu
iria me atrasar. Isso a secretária não havia previsto. Mero erro de
cálculo da parte dela, contar com o transito bom. Comecei a reunião com
quarenta e cinco minutos de atraso. Quarenta
e cinco! Inaceitável tal comportamento vindo da minha parte, mas
eu não tinha culpa! Pelo menos, foi o único incidente da tarde.

Ao final do dia, tudo o que eu queria –e precisava- era de um bom e belo
banho. Vesti meu roupão, pedi McDonald’s, e, enquanto eu esperava,
liguei a televisão. Nela, as mesmas notícias de sempre: meninas sendo
violentadas por adolescentes sem limites, aviões que caem aparentemente
sem nenhuma explicação, lugares com enchentes que destroem tudo enquanto
outros lugares são destruídos pela seca... Mundo deprimente o nosso.
Estava prestes a desligar a televisão quando... opa! A favela que havia
pegado fogo pela manhã e atrasado minha reunião apareceu nas notícias! E
foi aí que eu percebi os quão estúpidos e ego centristas podemos ser
diante de certas situações! Enquanto eu reclamava por ter chegado
atrasada na minha reunião, aquelas famílias da favela corriam para
salvar seus filhos e sobrinhos (bem como o pouco que possuíam) das
chamas ardentes. O conforto e calor da minha casa nunca me pareceram tão
frios. No meio de toda aquela bagunça emocional a campainha tocou. Fui
receber meu pedido trazido por um motoboy sorridente do McDonald’s
(coisa rara de se ver). Eu finalmente tinha achado a peça (ou
“mosquito”, tanto faz) que parecia não se encaixar na minha cabeça! O
nome dele era “consciência”, e a espécie, “culpa”.

segunda-feira, 8 de março de 2010

A coleira e a guia.- Rolando Vezzoni

Ele foi andar com o seu cachorro.
Colocou um chinelo, colocou a coleira e a guia no animal.
Antes ele costumava andar despreocupadamente, sem coleira, sem guia, sem nada... Mas os tempos haviam mudado, e agora se prende o animal por seu próprio bem, e também para seus vizinhos não incomodarem tanto.
Quando o animal era pequeno, não saia de casa, depois quando ficou mais seguro passou a leva-lo para dar uma voltinha com guia curta.
Saíram da casa, e o animal começou a cheirar os dejetos de outros que passaram mais cedo.
Aos dois anos animal era muito agitado e corria muito, queria fazer de tudo, e a coleira enforcadora foi necessária.
O animal estava calmo ao seu lado, eles estavam indo para o parque.
Com quase quatro anos, já havia sido domesticado o suficiente para andar com guia frouxa, e logo, sem ela.
No caminho trombou com outro cachorro e cheiraram seus anus com se fossem as mais cheirosas flores.
Andou durante alguns meses sem guia nem coleira, mas teve que parar, pois os vizinhos não acharam seguro, por mais dócil que fosse, ele não deixava de ser um animal...E reclamaram dias e noites, até conseguir amarra-lo na mão de alguém.
Estavam chagando no parque onde costumam ir, pois tem um cercado de 25m de diâmetro onde o cachorro pode ver-se livre de sua coleira e guia.
Ele se conforma com aquele cantinho fedido que tem para ficar livre... Livre?
Humilhante a condição de mamífero socializado, tanto dele, como do dono... Sempre aprisionados, sempre castrados, sempre esmagados por uma massa maldosa e estúpida.


A coleira é uma criação humana, ela é usada para identificar algum animal, como um documento. A guia é usada para controlar, ou impedir algum animal de se portar de modo anti-social... O ser humano usa suas próprias coleiras para ser aceito em seu meio, e é guiado por pessoas que desconhece.